Total de visualizações de página

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

O SOL ME ESCURECEU


A mulher negra, na Bíblia, tem como símbolo, Sulamita, ou a Rainha de Sabá, que manteve intenso amor com Salomão, cujo relacionamento é descrito em detalhes em " O Cântico dos Cânticos".
O casal gerou Menelik I, aquele, que, mais à frente, recebe a tarefa mítica do pai de conduzir a Arca da Aliança para Etiópia, onde o cristianismo nasceu e se fortaleceu e depois se espalhou pelo mundo.
Foi uma jornada paradigmática, sem paralelo na história afroreligiosa.
Assim, o maior poema de amor entre duas pessoas ( Sulamita-Salomão) tem uma transversalidade afro, ou seja, na presença de Sulamita irradiando sua beleza/dominação afro em relação a outro ser. Ela, por conseguinte, é de beleza inconteste, fantástica e envolvente.
Se a gente reler, agora, com mais argúcia o " Cântico dos Cânticos", veremos, neste sentido, várias coisinhas dialéticas quando a cor negra permeia diversos aspectos da Bíblia, que, na verdade, são poucas vezes explicitados para os cristãos em função até do que eles podem causar como novos significados de leitura bíblica.
Mas, vejamos, estes aspectos. Em primeiro lugar, o protagonismo estético da mulher negra naqueles tempos; a intensidade de um relacionamento entre seres de cores diferentes; as diferentes estratégias para burlar aqueles que não viam bem este relacionamento; e por fim, a agudização da intensidade das relações entre Sulamita/Salomão, onde, dois seres, passam o tempo todo, no poema bíblico, fazendo mútuos elogios um para o outro, utilizando como metáfora os valores mais importantes da daquela época como incenso, vinho, mirra, leite, gado, ervas etc.
Em geral, existem publicações bíblicas que se propõem a ocultar a condição de cor de Sulamita, ou seja, querem esconder sua cor, pois, ela é a grande protagonista de " O Cânticos dos Cânticos". Ou seja, a mulher negra, nesta perspectiva, aqui, está em primeiro plano.
Na minha Bíblia ( Editora Alfalit Brasil, RJ, 1999), é impossível para tradutor esconder a cor de Sulamita. Veja, por conseguinte, logo nos primeiros versos, no diálogo Sulamita se apresenta para suas rivais, as judias, que ficam ressentidas por Salomão tê-la escolhido como sua favorita .
Neste sentido, Sulamita diz, assim, para suas rivais "brancas": " Sou escura, porém, amável, filhas de Jerusalém, como as tendas de Quedar, como as tendas de Salomão".
Não seria melhor o tradutor ter posto " Sou negra", ao invés de " sou escura" ?
Bem, parece, que nesta altura, quando apresenta sua identidade física, Sulamita está sofrendo grande pressão por ter se apaixonado por Salomão. Ela mesmo diz que as mulheres judias não admitem que ela possa ser favorita de Salomão com aquela cor. Ela tenta contemporizar, ao dizer para suas rivais: " Não olhes para mim porque sou escura: o Sol me escureceu".
Ou seja, aqui, nesta passagem bíblica, Sulamita, a mulher mais linda Terra naquele momento histórico, tenta uma justificativa "natural", quer dizer, atribuindo a natureza o processo de ter se tornado uma mulher diferente, ou seja, de ter nascido com a cor negra, que, por conseguinte, deve ter sido fomentada pelos raios do Sol...Assim, diz ela para as judias: " Não olhe para mim porque sou escura: O Sol me escureceu".
No entanto, Salomão, não vê coisa assim. Ele acha, por conseguinte, que está diante de uma mulher superior a todas. Naquela época, Salomão, bonito, guerreiro, sábio, sagaz, podia ter as mulheres que quisesse em sua cama, mas, ele, em várias passagens, diz que não existe outra superior a Sulamita.
Em certo momento, Sulamita, assume sua condição de mulher total, diante da pressão das judias para que sai fora do relacionamento com Salomão: "Eu sou a Rosa de Saron, o lírio dos vales", diz ela, numa tentativa de afirmação de sua beleza, de sua identidade, de sua cor, de seu estilo diferente de mulher, ante o ressentimento das rivais.
Por outro lado, vejamos, por conseguinte, os arroubos salomônicos em relação à sua amada. Diz ele, referindo-se a Sulamita:
"Tuas faces são delicadas quando ornadas com enfeites, teu pescoço com jóias preciosas"
"Tu é és formosa, minha amada, tu és formosa. Teus olhos são os da pomba".
" Teu pescoço é como a Torre de David, edificada para arsenal, no qual pendem milhares de escudos, todos broquéis de guerreiros valentes. Teus seios são como dois filhotes gêmeos da gazela, que se apascentam, entre as rosas"
Tu és bela, minha amada, e não tens nenhuma imperfeição".
Teus lábios destilam o mel, minha noiva! Mel e leite estão debaixo da tua língua, e o perfume de teus vestidos é como o cheiro do Líbano.
És fonte de jardim, poço de águas vivas, que fluem do manancial do Líbano.
O contorno de tuas coxas são como jóias, obras de joalheiro. Teu umbigo é como uma taça redonda, a bebida nunca falta; teu ventre é como um monte de trigo, cercado de rosas.
Por sua vez, Sulamita, no mesmo " O Cântico dos Cânticos", fortalece seu amor, sem esquecer das rivais. Ela diz, a certa altura, muito preocupada: " Eu vos suplico, filhas de Jerusalém, se encontrades meu amado, dize-lhe que estou doente de amor".
Independente desta guerra para manter Salomão ao seu lado, Sulamita protagoniza, nesta história, momentos impressionantes de dedicação ao amado, ou seja, vê nele muitas virtudes comparadas com a mecânica da natureza. Vejamos alguns trechos de dedicação Sulamita a Salomão:
Meu amado é puro e coroado, distinto entre dez mil.
Sua cabeça é como ouro refinado, seus cabelos são ondulados, negros como o corvo.
Sua mão esquerda estaria debaixo da minha cabeça, e sua direita me abrace.
Eu sou um muro, e meus seios são como torres: então, tornei-me a seus olhos como aquela que acha paz.
Eu sou do meu amado e meu amado é meu.
Enfim, um amor histórico, com dinâmica afrodescendente, marcando as diferenças, ou seja, ainda assim, a cor é uma balizadora de encontros/desencontros entre os seres humanos.

CARLOS NOBRE

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe um recadinho, quero saber sua opinião!